domingo, 25 de outubro de 2015

A CONFISSÃO DE LULA


                                                                              por Fernando Lomardo

     Foi com certa surpresa e, por quê não, com algum alívio que li, em matéria do jornal O Globo, de 25 de outubro de 2015, a confissão de Lula de que cometeu crimes durante e após seu governo. Claro que foi uma confissão involuntária, o que é comum em pessoas cujo nível de ignorância faz desconhecer as armadilhas da linguagem. Mas ao protestar desesperado contra o instituto da colaboração premiada, recurso legítimo e democrático de colaboração com a Justiça e consequente redenção parcial de criminosos recuperáveis, o ex-torneiro mecânico deixou escapar sua ascendência sobre o conjunto dos denunciados e seu inconformismo em constatar que nem todos colocarão a cabeça na guilhotina para salvá-lo.

     Enfurecido com o caminhar das investigações, que se aproximam lentamente mas (esperamos) de forma inexorável do ex-sindicalista, este tentou desqualificar o instituto da colaboração com uma frase que julga bombástica (com sua limitação verbal, Lula só sabe se comunicar através de frases de efeito totalmente montadas sobre clichês, e aplaudidas apenas pelos desocupados que recebem merrecas para presenciar seus discursos). A frase é: “Delator entrega até a mãe para sair”.

     Opa-opa. Que informação preciosa. Não por seu sentido literal, mas pelo que permite entrever. Em primeiro lugar, evidencia que Lula se considera uma mãe. Mãe de quem? De quem está preso, certamente, já que são estes que estão delatando. Até aí, “pereré pão-duro”, como diz o jargão.

     Mas este não é o principal ato falho do ex-grevista. A maior revelação embutida na frase de Lula é a de que o cara “entrega até a mãe”. Mas o fato de alguém ser entregue não significa que seja inocente. Ao contrário. Só se pode entregar aquilo que se pode provar.

     Delatar a própria mãe (quiçá o irmão) pode ser, para alguns, grave falha moral – como, de resto, o roubo, a corrupção, o desvio de dinheiro público. Porém, é ato perfeitamente legal do ponto de vista jurídico. E o mais importante: a delação de maneira alguma isenta o delatado de culpa. Não é porque foi denunciado que qualquer bandido tem direito a sursis. Além disso, o ódio e a fúria contra a colaboração, a discriminação ao colaborador, o preconceito contra a investigação, apenas levantam mais suspeitas: “ó gajo, se não deves, por quê temes?”, perguntaria o patrício.

     Por quê o ex-candidato derrotado três vezes não disse, por exemplo, que o colaborador “inventa coisas”, ou que “mente”, ou qualquer coisa parecida? Não. Ele disse que o cara entrega – e não se pode entregar o vento, nem estocá-lo, não é verdade? É preciso ter algo para entregar.

     Foi assim, por exemplo, com Pedro Collor, quando denunciou seu irmãozinho naquilo que acabou resultando no impeachment do colecionador de carros de luxo, em 1992. Os indícios e provas estavam dissimulados, camuflados, maquiados, como estão hoje. Mas foram pouco a pouco levantados até surgir a prova cabal.

     Quando será que os colaboradores entregarão o endereço da garagem onde Mamãe guarda seu Fiat Elba?

terça-feira, 20 de outubro de 2015

MINISTRO MARCO AURÉLIO MELO NO PROGRAMA RODA VIVA

por Fernando Lomardo

     Desnecessária, quase nula, a entrevista do magistrado Marco Aurélio Melo no programa Roda Viva da TV Cultura, nesta 2ª. feira, 19 de outubro de 2015, às 22 h.

     Bendita língua portuguesa. Eu disse quase nula. O advérbio é providencial na medida em que as posições do ministro, se em absolutamente nada colaboram com o Brasil e com o bem estar da população, ao menos ilustram a posição do magistrado frente aos graves problemas do país, e quiçá sirvam de reflexo para compreender seus pares – porque “tomo meus colegas como a mim mesmo” (sic).

     Momentos de singela pureza enterneceram o espectador. Ao dizer que sabe “conviver com divergências”, o ministro citou o Fla-Flu caseiro, em que ele é Flamengo e a esposa (também juíza), Fluminense. Pareceu-me ver margaridas brotando no estúdio da TV Cultura. De fato, é uma divergência análoga à de forças da ordem pública (como a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal do Paraná) lutando contra decisões encomendadas a ministros nomeados por encomenda.

     Não faltaram também momentos de demagogia. Marco Aurélio Melo gosta de falar em nome do povo e dizer que a crise econômica tira o sustento, “o pão da mesa”. Mas recusa-se a ver o emperramento do aparelho jurídico, que envolve morosidade inadmissível da primeira à última instância do Judiciário - e que tal circunstância, em um país que tem milhões (sim, milhões) de processos na justiça, também tira o pão da mesa, pois, na grande maioria desse processos (muitos deles envolvendo precatórios, recurso imoral do Estado cujo objetivo precípuo é o de prejudicar o cidadão), repito, na maioria desses processos o cidadão, dolosamente prejudicado pela iniciativa privada ou pelo poder público, MORRE sem receber a devida reparação, sim, de ordem pecuniária, na maioria dos casos roubada pela iniciativa privada ou pelo poder público. Direitos adquiridos, benefícios oriundos do justo suor, são diuturnamente vilipendiados por governos irresponsáveis e falaciosos, direitos são adiados ad eternum pelo emperramento jurídico de um aparelho obsoleto e prepotente. Nada disso é mencionado pelo magistrado que supõe falar em nome do povo. Da mesma maneira, recusa-se a comentar as falhas de um Código Penal de 1916 e de um Código Civil de 1941, recusa-se a reconhecer que a Defensoria Pùblica é uma falácia e recusa-se a reconhecer o favorecimento à impunidade possibilitado pelos inúmeros recursos de nosso sistema. Compara o Brasil aos Estados Unidos, talvez desconhecendo que a comparação é uma piada. Afinal, se os Estados Unidos têm um número bem maior de serial-killers, por outro lado têm um número infinitamente menor de latrocínios e homicídios culposos, causados por embriaguez no trânsito, por exemplo – e, principalmente, um número vergonhosamente (para o Brasil) menor de homicidas respondendo em liberdade, pelo recurso a fianças ou habeas-corpus.

     Em suma, o magistrado não acrescentou nada que colabore com o andamento proativo da solução dos problemas singulares e possivelmente inéditos que o Brasil vive hoje, aqui fora, longe dos salões e das capas do STF. Além de sua sugestão, que ele mesmo classifica de “utópica”, e que de fato não é mais do que ingênua, de que Dilma, Cunha e Temer renunciem juntos (?!?!?!?!), o magistrado não apresentou um minúsculo rascunho de solução para os problemas do Brasil – vale dizer (antes que alguém me corrija, dizendo que não é função de um juiz do Supremo), nem mesmo para problemas de ordem especificamente jurídica, que são seu objeto de trabalho. Não. O ministro estava preocupado apenas com formalidades judiciosas, como afirmar que Juízes do TRF-4 não são desembargadores. Enfim, preocupado com questões absolutamente irrelevantes para a população brasileira.

     É aqui que o advérbio quase apresenta sua função. A entrevista do ministro do Supremo só não foi completamente nula porque permitiu elucidar alguns pontos da atual conjuntura jurídico-política do país. Permitiu confirmar que o Juiz Federal Sérgio Moro (se compreendermos o sentido inverso das palavras do ministro Marco Aurélio) está definitivamente no caminho certo. Permitiu compreender que Sérgio Moro surpreende, intimida e gera mesmo inveja em outras instâncias do Poder Judiciário. Permitiu entender que, apesar do esforço do ministro Marco Aurélio em defender seus pares, existe mais de um peso e medida para o que ocorre no Supremo.

     O ministro negou veementemente a hipótese de que ministros do Supremo possam retribuir a indicação partidária com favores ao partido. Porém, depois de afirmar que “não se agradece com a capa” (com o incompreensível assentimento de José Nêumanne Pinto, cujas experiência e inteligência já deveriam ter convencido do contrário), ficou sem resposta ao ser interpelado sobre a consulta (irregular, senão ilegal) de Dias Toffoli a Dilma sobre a relatoria de Gilmar Mendes, em processo que corre no TSE.

     Em outro momento, vivas à Freud, cuja presença espiritual o ministro ignorava. Mas “o inconsciente fala”, nos ensina o mestre vienense. Depois de ressaltar, por várias vezes, que “tomo os colegas como a mim mesmo”, (ou seja, sabe que eles têm seriedade idêntica à sua) e que “trabalha pesado” (o que ninguém duvida), o ministro revelou que “não sou locutor de assessor” – ou seja, não fico apenas repetindo o que meus assessores interpretaram para mim. Ocorre que dizer que “não sou locutor de assessor” significa que alguém o é – e como se tratava de comparações com os colegas do STF, esses “locutores” lá estão. Quem serão?


     É, a entrevista foi quase nula.

sábado, 17 de outubro de 2015

PAREM DE DIZER QUE DILMA É HONRADA

Parem de dizer que Dilma é honrada
Fernando Lomardo

     Não são poucos os artigos e editoriais que tenho lido examinando a caótica situação política e moral do país, e a responsabilidade da presidente nesse quadro. Mas uma afirmação recorrente me causa estranheza: a de que Dilma “não enriqueceu pessoalmente”. Atribuem a ela, no máximo, negligência ou incompetência. Nada de intenção na espoliação da Petrobras (que é só o que sabemos, por enquanto; quando estourarem Eletrobras, BNDES e outras, não quero nem ver como vamos dormir). Alguns, como o ex-presidente FHC, fazem questão de afirmar que Dilma é “honrada”, num momento em que as inúmeras mentiras da presidente já se escancaram por todo o planeta e, apesar disso, seu Ministro dos Retalhos não sabe fazer outra coisa além de taxar o contribuinte e tentar cortar mais da Previdência.

     Bem, meu conceito de honra é bem outro. Alguém honrado já teria admitido que mentiu. Alguém honrado já teria compreendido que não é capaz de tocar esse barco e teria pedido o boné. Alguém minimamente honrado não estaria se agarrando ao trono de forma covarde, esperneando desesperado, oferecendo ministérios em troca do próprio pescoço, quando aqueles deveriam ser ocupados por técnicos e especialistas capazes de enfrentar desafios e problemas e encontrar soluções no âmbito da gestão de Estado e não do bolso do contribuinte.

     Dilma está muito longe do que um simples dicionário define como honrado. Com sua empáfia, garantida apenas por cinismo e hipocrisia sem antecedentes, por fidelidade canina à mentira, talvez por mitomania patológica, Dilma disse que “não respeita delator”, porque ela mesma não traiu. Cerveró que o diga. Foi delatado covardemente pela presidente, que afirmou ter assinado a compra de Pasadena mediante relatório do pobre diretor – de resto, outro corrupto – como se ela, presidente do Conselho de Administração, não tivesse a obrigação de ler detalhadamente a porcaria do relatório e identificar ali as falhas, irregularidades, incongruências. Ou seja, Dilma o responsabilizou – em bom português, Dilma culpou o diretor internacional da Petrobras na tentativa de isentar-se da própria culpa. Entregou um colega para tirar o seu da reta. Se isso não é uma delação, digam-me o que é.

     Por favor, jornalistas, “especialistas” e editores, parem de dizer que Dilma é “honrada”. Parem de dizer que Dilma “não enriqueceu pessoalmente”. Como é que vocês sabem? Têm por acaso acesso ao extrato bancário da dona? As contas dela foram devassadas? Seu patrimônio foi levantado? Como podem ter tanta certeza? Por quê essa ansiedade em assegurar a honradez de uma mulher diretamente envolvida na maior operação de desvio de dinheiro público da história política da humanidade?

     Se, do ponto de vista judicial, a dita “presunção da inocência” e as melífluas armadilhas interpretativas sobre fatos “anteriores ao mandato” permitem que a vastidão de evidências contra Dilma permaneça ignorada, do ponto de vista meramente factual o povo já tomou sua decisão. Contra fatos não há argumentos, e os fatos da realidade são diferentes dos fatos jurídicos. Se a justiça (ainda mais essa nossa justiça) continua insistindo na presunção da inocência, a sociedade já protocolou e assinou sua presunção de culpa.

domingo, 4 de outubro de 2015

A DEFESA DO BANDITISMO DISFARÇADA DE CRÍTICA SOCIAL - Fernando Lomardo

    O jornal O Estado de São Paulo publicou, em sua edição de 03 de outubro de 2015, um artigo do sociólogo José de Souza Martins, que pode ser acessado no link abaixo:

     http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,historia-que-se-arrasta,10000000191

     O autor critica a ação preventiva da polícia carioca contra os arrastões nas praias, comparando-a a ações do tempo da Abolição, e justifica o arrastão como manifestação legítima das comunidades "excluídas".

     O texto abaixo é minha resposta a este artigo:

A DEFESA DO BANDITISMO DISFARÇADA DE CRÍTICA SOCIAL
Fernando Lomardo

     “Ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão”. (Ditado popular).

     Parece ser esse, em suma, o “ensinamento” que o sociólogo José de Souza Martins pretende nos transmitir em seu artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 03 de outubro de 2015. Os menores que praticam arrastão nas praias do Rio têm o direito de roubar, pois a sociedade – melhor dizendo, a “elite” – roubou deles o acesso a um lugar ou a um “pertencimento” (conceito acadêmico de bolso, mais ou menos recente e que justifica qualquer distorção em favor de supostos direitos sociais).

     A princípio, o texto pode parecer despeito de paulistano. O simples uso da palavra “periferia” escancara um certo desconhecimento da vida no Rio, já que aqui a favela está geograficamente entranhada em toda a cidade, inclusive na supostamente glamourosa Zona Sul, e a palavra ”periferia” pouco se faz presente no vocabulário carioca.

     Mas não nos enganemos. É muito pouco atribuir as mirabolantes distorções do artigo a uma simples “rivalidade”, responsável por pérolas como “a praia é um faz-de-conta”. Não. Muito pelo contrário, o texto do senhor Martins é bem cuidadosamente articulado através de clichês socio-econômicos cujo objetivo é colocar-se em defesa de supostos excluídos e justificar ações, programas e estudos, na esfera pública e privada, que acabam movimentando milhões em reais, anualmente.

     A opção pelo conceito de “ostentação” para ilustrar o comportamento dos banhistas, ricos ou pobres, mostra o quanto o autor está na moda. Penso mesmo que ele deveria, ao invés de escrever um artigo, compor um funk carioca. Antenado com a atualidade, lança mão de todos os lugares-comuns que o discurso politicamente correto (inclua-se aí mídia, políticos e acadêmicos) tem disparado em sua cruzada contra o “preconceito”.

     A comparação com a Lei de Repressão à Vadiagem é mais frágil que um cubo de gelo largado no sol. Não existia, na época da Abolição, nada remotamente comparável à violência urbana hoje presente nas metrópoles brasileiras (e gradativamente migrando para cidades menores, como resultado da repressão a esses pobres excluídos que são obrigados a roubar e matar). Autores como Nabuco já haviam prevenido sobre o “14 de maio” (o período imediatamente posterior à abolição), antevendo que seria flagrante a falta de opção dos ex-escravos.  Os dois quadros sociais são tão semelhantes entre si quanto uma banana e um computador, assim como as ações neles contidas: a detenção, efetivamente injusta, de um sujeito que não está fazendo absolutamente nada (em 1888) e a ação preventiva contra grupos que efetivamente se preparam para roubar, agredir e, conforme o caso, matar (em 2015, ou 1992, como bem ilustrou o artigo de Mario Vitor Rodrigues publicado no Blog do Noblat).

     Torna-se inevitável citar um pensador irlandês, o que vai jogar mais lenha na fogueira. Afinal de contas, Oscar Wilde era branco, aristocrático e europeu, ou seja, o típico exemplar de uma Elite Colonialista Imperialista Opressora Responsável Pela Desigualdade Social Dos Países Do Terceiro Mundo Secularmente Explorados Pelo Invasor Estrangeiro, de acordo com o Dicionário Nacional de Clichês Acadêmicos. Em contrapartida, era homo-erótico, o que talvez lhe assegure um lugarzinho na última fila dos esquerdistas de botequim.

     A citação é: “Só os superficiais não julgam pelas aparências”. Tradução: as aparências não enganam. Não há grande dificuldade de diferenciar bandidinhos menores de idade de um rapaz comum que está apenas indo para a praia. Bandidinhos andam em grandes bandos, como esclarece a etimologia (bandido = membro de bando), pulam roletas de ônibus ou entram pela janela, ameaçam motoristas, cobradores e passageiros, cantam proibidões em altos brados, propagando crimes como “derrubei o avião” (helicóptero da polícia), “vou meter o três-oitão” (revólver calibre 38), “na favela vai morrer” (o policial ou o cidadão), entre outras ações de óbvia manifestação de ódio, discriminação e violência.

     Não é fato que não possuem sinais de pertencimento. Possuem e muitos, na própria pele. Escarificações à base de canivetes ou cacos de vidro. “Na pele dura mais”, disse um interno de instituição socio-educativa a uma professora. E apontam o pertencimento pelo qual optaram: siglas como CV ou ADA, indicativas de grupos criminosos contados entre os mais perigosos e violentos do mundo.

    À “cerca invisível”, ao “bloqueio simbólico” e outras facilidades retóricas pretensiosas, disfarçadas de análise social, se contrapõem, avassaladores, o assalto, o roubo e a agressão concretos, bem visíveis e reais. Uma facada na barriga não é simbólica. Um cordão arrancado, deixando marcas de sangue no pescoço, não é invisível. Invisível, mesmo secreto, talvez seja o que move esses acadêmicos de boteco a defenderem bandidos.


     Esse tipinho de discurso sustenta uma vertente lucrativa da atuação acadêmica, assim como da política: a defesa das chamadas “políticas afirmativas” e outras ações e iniciativas de “recuperação”, que movimentam milhões de reais em dinheiro público e privado, através de programas de governo e de iniciativas de empresas e do Terceiro Setor. Não sei se o autor do artigo faz parte deste tipo de grupo. Se não faz, talvez esteja louco para entrar.

ARRASTANDO DEMAGOGIA, de Mario Vitor Rodrigues

ARRASTANDO DEMAGOGIA – Mario Vitor Rodrigues
http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2015/09/arrastando-demagogia.html
27/09/2015

     Uma parede humana avança sobre os banhistas; pavor e insegurança. Sem que se saiba de onde, começa uma grande confusão, o pânico toma conta da praia. As pessoas correm em todas as direções, são mulheres, crianças, pessoas desesperadas à procura de um lugar seguro. A violência aumenta quando gangues rivais se encontram. Este grupo cerca um rapaz que cai na areia e é espancado. A poucos metros dali, outro bando avança sobre a quadra de vôlei, os jogadores se afastam e cercam as barracas para proteger mulheres e crianças. Dois policiais, apenas dois, chegam até a areia, eles estão armados mas parecem não saber o que fazer com tanta confusão e correria. Perto dali, um rapaz ignora a chegada dos policiais para roubar. Ele se abaixa, pega uma bolsa de praia e corre. Veja de novo, ele é seguido pelos companheiros de gangue, que impedem a aproximação das pessoas.

Se ainda existiam dúvidas sobre a profundidade alcançada pelas garras do populismo de esquerda entre nós, desde o último fim de semana já não faz mais sentido tê-las. Não após o nível do debate provocado pelos arrastões em Ipanema.

Afirmo sem medo, jamais teria vez em uma sociedade lúcida, para não dizer bem intencionada, a inversão de valores defendida nas abordagens sobre o tema. Uma ladainha já conhecida, neste caso determinada a relativizar furtos e assaltos, que teve como alicerces as falácias de sempre: injustiça social, racismo e violência policial.

Sobre o primeiro ponto, sequer vale a pena estabelecer comparações com países de perfis sócio-econômicos similares ao nosso. Seria dar fôlego aos interessados em se aproveitar do mais puro e simples banditismo para fortalecer discurso ideológico.

Já a premissa de amalgamar pessoas ao bel-prazer, diga-se, utilizando a cor da pele como desculpa, é oriunda da mesma conversa. A partir de então, fica cômodo colar selos no indivíduo e instrumentalizá-lo em benefício próprio. Nem que seja para posar de bom moço em papo de bar, ao julgar e absolver seus crimes.

Quanto aos abusos da polícia, obviamente devem ser observados com atenção pela sociedade, interessa a todos que o rigor da lei também se imponha aos bandidos de farda. Mas nada justifica engolir discurso orquestrado para impor generalizações interesseiras - como por exemplo, de que nem todo favelado seja bandido, mas de que todo policial necessariamente seja violento, fascista e corrupto.

Nesta hipótese, percebam, não resta saída para a polícia. Se decidir esperar pela ação criminosa, falhará duplamente, antes, por ter permitido o delito, e depois, ao usar de força excessiva na hora de deter o bandido. Se, por outro lado, decidir prevenir, como qualquer polícia deve fazer, será acusada de preconceito. Uma armadilha retórica boçal, mas que virou dogma de tão difundida.

Claro que a popularidade deste nocivo raciocínio não foi alcançada da noite para o dia. Muito pelo contrário, representa uma construção iniciada há décadas, tanto nas escolas, como nas faculdades, via jornalistas e formadores de opinião. Graças a ela, noves fora a já fossilizada culpa católica, o brasileiro emburreceu a ponto de aceitar com normalidade a carapuça de carrasco. Até mesmo em casos assim, quando claramente é a vítima.

Antes de regurgitarmos ideias falidas, seria mais sensato lembrar os milhões de “pretos e favelados”, como gostam de dizer os arautos da superioridade moral, que certamente não têm vida fácil, mas saem de casa todo dia para trabalhar honestamente, e não para se divertir saqueando, impondo o terror e agredindo quem encontrarem pela frente.

em tempo: Ainda ontem, o adolescente flagrado durante o arrastão declarou ao O Globo que roubou “por prazer”. Torço para que sua declaração sirva pra intimidar um pouco quem, consciente ou inconscientemente, ajuda a subverter um mínimo de bom senso que ainda deveria nos restar.

Fulanos assim, que saem de casa para roubar e agredir, que superlotam ônibus e comportam-se de maneira ameaçadora, devem, sim, ser detidos pela polícia. O que não pode, é um comportamento claramente anormal, de afronta, ser contemplado candidamente como se nada fosse, quando todos sabemos muito bem do que se trata.


O que, aliás, o trecho em destaque no início deste artigo - transcrito de uma reportagem veiculada no Jornal Nacional, sobre um arrastão na mesma Ipanema há 23 anos -, deixa muito claro.