sábado, 28 de maio de 2016

CONSIDERE-SE TREINADO!

por Fernando Lomardo

      Este é o segundo de uma série de artigos sobre minha experiência como parecerista da Sefic (Secretaria Especial de Fomento e Incentivo à Cultura, órgão do Ministério da Cultura), entre 2009 e 2012. Para quem não leu o anterior, caso tenha interesse o link está abaixo:
http://quatroasas.blogspot.com/2016/05/sabemos-tudo-que-se-passa-nesse-grupo.html


     O Edital de Credenciamento n° 1/2009 foi publicado no Diário Oficial da União em 13 de julho de 2009. Minha inscrição foi registrada sob o número 1269, e aprovada para as áreas de Artes Cênicas, Música e Humanidades, de acordo com publicação no Diário Oficial da União de 02 de dezembro de 2009.



     Poucos dias depois, ainda em dezembro de 2009, recebemos, por e-mail, o Termo de Compromisso, o qual deveria ser impresso, assinado e reenviado, em três vias, através dos Correios.
     Começa aqui a recorrente ausência de comunicação com a Sefic, a qual prejudicou em muito o trabalho, a relação com o Ministério e suas vinculadas, o recebimento de valores devidos, a atualização de leis e instruções normativas e, com tudo isso, a própria credibilidade da iniciativa.
     Os Termos de Compromisso, depois de reenviados pelos pareceristas, levaram meses para retornar com a assinatura do Secretário Especial, senhor Henilton Parente de Menezes – pessoa a quem dedicarei um artigo exclusivo, tal sua importância na sequência de trapalhadas deste processo. Somente em maio de 2010 (mais de cinco meses após terem sido remetidas com a assinatura dos pareceristas) recebi de volta minha cópia. Durante esse período enviei três e-mails à Sefic perguntando sobre o assunto. Nenhum deles recebeu qualquer resposta.



 
     Isso, no entanto, ainda era café pequeno comparado a algumas coisas que já ocorriam e outras que ainda estavam por vir.

O “TREINAMENTO”

     Em 12/03/2010, a Sefic promoveu (ou tentou promover) um treinamento (ou “capacitação”, como eles a chamavam) virtual para os pareceristas (ou peritos) contratados pelo Minc. Note-se que esta capacitação ocorre 100 dias após a publicação da seleção no D.O.U., sem qualquer justificativa para este intervalo de tempo. Na imagem abaixo, o e-mail de convocação para a sala virtual onde se daria o treinamento. Convocação emitida repentinamente, apenas dois dias antes da data, sem qualquer preocupação com possíveis compromissos já assumidos pelos peritos, que até este momento estavam totalmente no escuro em relação a todo o processo.
     Mesmo assim, a maioria do grupo de peritos (em torno de 400 pessoas) organizou seu tempo de modo a estar disponível na hora determinada.



     12 de março de 2010, 13:00. As pessoas começam a tentar entrar na sala virtual.
     Você conseguiu? Nem eu. Nem a grande maioria de nós. Cerca de 350 pessoas simplesmente não conseguiam entrar: os botões virtuais não respondiam. Você podia clicar à vontade na janela de login ou em qualquer outro ícone da tela e nada. Muita gente, inclusive eu, começou a ligar para Brasília (sede da Sefic). Nada. Ninguém atendia. Uma coisa inexplicável. Depois de cerca de uma hora fazendo várias tentativas, desisti. Ficou uma certa sensação de absurdo, uma coisa meio inacreditável. Cheguei a ligar a TV para ver se aparecia alguma notícia. Um incêndio, sei lá eu. Mas o motivo era mais prosaico. Quase infantil.
     A Sefic simplesmente havia contratado uma plataforma com capacidade máxima para 100 pessoas. Como os pareceristas eram em torno de 400, a maioria não conseguiu entrar na sala virtual. Simples assim.
     Houve ainda outro problema: um dos peritos que conseguiu acesso gravou o treinamento. Com o tempo acabei perdendo este arquivo de vídeo, mas ele mostrava que, após uns 15 minutos de vídeo-conferência, a imagem congelou. Só se ouvia o áudio do treinamento. O resultado foi cômico, porque ninguém na Sefic pareceu se preocupar com isso. O “treinamento” continuou, com os instrutores dizendo coisas como “estão vendo este ícone aqui à direita”?, e evidentemente ninguém via nada, com a tela congelada.

     Reproduzo abaixo três das mensagens que recebemos após esse lance de comédia. Na primeira o Secretário, Sr. Henilton Menezes, se desculpa e faz promessas para o futuro. Na segunda, o senhor Lauro Ribeiro, cujo cargo eu nunca soube exatamente qual era, nos enviou “material instrucional” em arquivos pdf. Nós, pareceristas, que a esta altura já tínhamos criado um grupo virtual para troca de informações, começávamos a perceber que teríamos que “nos treinar” sozinhos. E de fato, uma segunda capacitação (se é que a primeira merece este nome) nunca ocorreu.
     A terceira mensagem é a mais estarrecedora. Não sei qual foi a matemática maluca que fez o senhor Ribeiro afirmar que “Hoje, nós temos 100% do corpo de pareceristas treinado”. (!!!) Parece mesmo uma dessas contas do PT, que diz que assentou “milhões de famílias” enquanto o número de supostos sem-terra nunca para de crescer. Enfim, o senhor Ribeiro acaba criando uma solução brilhante que parece saída diretamente da boca da nossa presidenta-mulher: “Quem não recebeu treinamento, considere-se treinado”!

      Precisa dizer mais alguma coisa?

     No próximo artigo, nossas dificuldades para desbravar o sistema Salic.






sábado, 21 de maio de 2016

SABEMOS TUDO QUE SE PASSA NESSE GRUPO



Fernando Lomardo

     Tocou o telefone. Minha mulher atendeu.
     “É pra você”. Atendi.
     “É o senhor Fernando Lomardo”?
     “Pois não”.
   “Aqui é da Fundação Biblioteca Nacional. Eu quero falar com o senhor sobre as declarações que o senhor tem feito no grupo digital de pareceristas”.
     “Quem está falando”?
     “Aqui é da FBN”.
     “O senhor é parecerista”?
     “Não”.
     “Então como o senhor teve acesso aos e-mails de um grupo fechado”?
     “Nós sabemos tudo o que se passa no grupo. Qualquer coisa que for falada sobre a FBN chega aqui. Temos controle total. E não gostamos do que o senhor anda falando no grupo”.

     O diálogo prosseguiu em tom progressivamente ríspido, principalmente da minha parte. Terminamos quando informei ao interlocutor que poderia processá-los criminalmente, a ele e à Fundação Biblioteca Nacional, por invasão de privacidade. Mas estou colocando o carro na frente dos bois.

     O Ministério da Cultura havia aberto, em julho de 2009, inscrições para pareceristas da Sefic (Secretaria Especial de Fomento e Incentivo à Cultura). Os membros selecionados atuariam, através do Salic (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura, plataforma digital de inscrição e avaliação de projetos culturais), na emissão de pareceres técnicos para projetos culturais que reivindicavam isenção fiscal no âmbito da Lei 8.313/91, popularmente conhecida como Lei Rouanet. Minha inscrição foi aprovada para as áreas de Artes Cênicas, Música e Eventos Literários, o que me levaria a atuar sob coordenação de duas das chamadas Entidades Vinculadas do Ministério da Cultura: a Funarte (Fundação Nacional de Artes) e a FBN (Fundação Biblioteca Nacional).

     Desde o início dos trabalhos nós, os cerca de 400 pareceristas aprovados no processo, criamos um grupo de mensagens eletrônicas na internet, de modo a trocarmos informações e dúvidas, ajudando-nos uns aos outros, tanto nos aspectos técnicos da legislação quanto na utilização da própria plataforma virtual recém-criada, já que o treinamento que nos havia sido garantido pelo edital absolutamente não aconteceu, numa das ocorrências mais tristemente amadorísticas de que já tive a infelicidade de participar.

     Voltarei a este treinamento em artigo posterior. Aqui, estou dando um rápido histórico dos fatos que antecederam o telefonema que abre esse artigo. Como a sucessão de erros praticada pela Sefic e pelas vinculadas, em curto espaço de tempo, superava as expectativas mais pessimistas, muitos de nós começaram a trocar observações sobre essas falhas no grupo digital. Tal grupo, por razões óbvias, era evidentemente fechado – só os pareceristas faziam parte. Era necessária a autorização da moderadora do grupo para novas adesões. Isso visava preservar inclusive o sigilo do qual se recobrem os projetos em avaliação. Era portanto inaceitável que qualquer pessoa que não fizesse parte do grupo tivesse acesso às conversas. Um funcionário da FBN, que não fosse parecerista, não poderia ter acesso às informações ali trocadas. A conclusão era inevitável: alguém do grupo remetera mensagens privadas à FBN.

     A conversa citada acima não teve maiores consequências. Não processei os “invasores” e não voltei a receber qualquer contato ou reclamação dos mesmos. Mas essa foi a primeira demonstração pessoal que tive (e na época não liguei os pontos) de um fato que se tornou cada vez mais evidente e entranhado na administração pública brasileira, e que hoje apresenta sua salgadíssima e danosa conta: o aparelhamento, pelo partido do governo, das instituições públicas, através não só de cabides de empregos, mas de arapongas que vigiam tudo e todos na intenção de preservar a “democracia” – uma democracia bem ao estilo de Millôr Fernandes em sua clássica frase: ‘DEMOCRACIA É QUANDO EU MANDO EM VOCÊ; DITADURA É QUANDO VOCÊ MANDA EM MIM”.

     Fiquei cerca de dois anos como parecerista do MinC. Em todo esse período, não avaliei mais do que uns 20 projetos, até ser colocado na geladeira pelo diretor da Sefic, interpelado diretamente por mim após trabalharmos cinco meses sem receber um centavo dos valores previstos em contrato. Nesses dois anos, presenciei coisas progressivamente estarrecedoras, desde o “treinamento” a que já me referi até a ausência de resposta a pedidos de informação enviados aos responsáveis pelo sistema; desde a espionagem aqui relatada até as diversas falhas no funcionamento da plataforma; desde a ausência de recebimento pecuniário, a que já me referi, até a perplexidade ao constatar que não é absolutamente necessário nenhum conhecimento técnico para ser parecerista de projetos culturais do MinC: simplesmente seu conhecimento técnico não é exigido.


     Todos esses fatos, entre outros, serão relatados, da forma mais detalhada que meu dossiê e minha memória me permitirem, numa série de artigos que publicarei aqui a partir de hoje. Talvez esses textos possam ajudar, minimamente que seja, a formular algumas questões sobre Política Cultural no Brasil, num momento em que a histeria tomou conta de uma classe artística que até agora não tem conseguido demonstrar, em primeiro lugar, o que de fato espera do poder público em termos de Políticas Culturais; e em segundo lugar, principalmente, por quê apoia uma proposta política que, em 13 anos, se pautou exclusivamente pelo privilégio, pela dissimulação e pela mentira.