Fernando Lomardo
Ele tinha tudo. Superpoderes. Todos. Era
forte como o Super Homem, duro como o Homem de Ferro, esperto como o Batman,
prodígio como o Robin, rápido como The Flash, cego como o Lanterna Verde.
Voava, corria mais que um trem-bala, salvava os passageiros do trem-bala, fazia
ponte com o próprio corpo para o trem-bala passar por cima, chupava o trem-bala
que nem bala. Nadava como Namor, gritava como Tarzan, tinha visão de raio-X e
olho eletrônico, jogava seu martelo e seu escudo, usava capa, capacete,
máscara, luvas, malha, símbolo, botas, sunga, short, chapéu, camiseta. Tinha
mais de dez identidades secretas: industrial, ex-combatente, estudante,
jornalista, aviador, milionário, agente federal, filho de lords escoceses,
mordomo, deus do Olimpo e não sei mais quantas.
Apesar de tudo, era um bom sujeito. Os
habitantes das dezoito cidades onde ele morava (todas com mais de doze milhões
de habitantes, ele tinha uma paixão irreversível pelas grandes metrópoles) até
que gostavam dele – quando se lembravam de que ele existia. Naturalmente, isso
só acontecia quando sobrevinha alguma catástrofe. Então, todos sabiam
imediatamente a quem procurar.
Foi o que aconteceu naquela sexta-feira,
13 de agosto de 2013. Apesar da crença geral de que este é um dia de azar,
todos estavam felizes com as magníficas perspectivas daquela data. As dezoito
metrópoles tinham motivos de sobra para comemorar: em Supercity, festejavam o
aniversário da cidade; em Supertown, o dia do santo padroeiro; em Superville,
tudo estava pronto para os festejos em homenagem ao dia da independência; em
Superburg, os habitantes relembravam a proclamação de sua república;
regozijava-se Supergrado pelo aniversário do monarca; em Supercidade,
finalmente se inauguraria uma rodoviária à altura; em Supercitá, todos
deliravam com a decisão do campeonato; Supertrópolis, alucinada, brincava o seu
carnaval; em Superaba, a abertura dos portos era louvada com entusiasmo; em Superzeiro,
grandes folguedos lembravam a data do nascimento de seu patriarca; Superciudad
cândida e docemente atravessava a Páscoa; Supervila se auto-elogiava pela
inauguração, longamente discutida e adiada, do prédio mais alto do mundo (mais
de 1836 andares, ou 9.000
metros, os engenheiros e operários perderam-se nas
nuvens e ninguém sabe ainda se o prédio ficou pronto); Supertaba,
excitadíssima, aguardava pela manhã a visita do Papa; em Supercountry, à
meia-noite explodiriam os fogos de ano-novo; Superland agitava-se em meio às
eleições para prefeito; em Superterra, o clima e os votos eram de Natal;
Superpátria, arrogante e blasé, gastava no uísque a alta jamais igualada da
bolsa de valores; e a mais nova de todas elas, exemplo de desenvolvimento a
curto prazo, a pouco mais que cinqüentenária Arraial Super assistiria a corrida
nos trilhos de sua mais recente e sofisticada realização: o trem-bala. Os
habitantes destas dezoito localidades saíam para as ruas felizes.
Despreocupados, absortos nas perspectivas internas. Todos pensavam nas festas.
Por cima ou por baixo de todos eles,
voando em baixo dágua ou correndo velozmente dentro do vagão do metrô, o
Supertodos, vigilante, zelava pelas cidades e pelo bem-estar de seus cidadãos.
Que só se lembravam dele na hora das catástrofes. Ele estava ali, sempre ali,
sempre ele, ali, sempre, sempre ele. Não os largava um instante, não desgrudava
deles, estava sempre com o olho eletrônico atento a qualquer ruído que pudesse
representar perigo para seus amados habitantes, suas pernas sempre prontas para
voar, a super força acumulada no cérebro. Em 13 de agosto de 2013, apesar da
crença geral de que este é um dia de azar, tudo parecia correr bem.
Não fosse o fato de o Supertodos escutar
demais.
Nosso herói, ouvindo alguém comentar a
comemoração dos anos do rei, entendeu que alguma coisa colocava em perigo o
ânus do rei. E pôs-se a agir imediatamente. Avançou sobre a cerimônia em
Supergrado e puxou todos os tapetes vermelhos, derrubando todos os presentes.
Agarrou o rei pela coroa e o levou para o alto do prédio de 1836 andares em Supervila. Enquanto
o monarca chorava desesperado, morrendo de medo de olhar para baixo, o
Supertodos desceu decidido a encontrar os responsáveis pela conspiração. Onde
estariam os assassinos? Para melhor perscrutar toda a região, pensou em
utilizar o olho eletrônico, mas uma súbita confusão de idéias o fez sair voando
incontrolavelmente, igual a uma bexiga que perde o gás, e ele acabou dando com
a cabeça num 747, derrubando-o no ato. O aparelho caiu sobre Supertaba, exatinho
no palanque onde se pronunciava o Papa, e a correria fez o Supertodos pensar
que os traficantes estavam ali. Atirou seu martelo sobre a multidão, certo de
que acertaria os culpados, mas acertou em Superburg e a cratera que abriu na
cidade engoliu metade dos desfiles pela proclamação da república. Decidido a
fechar o buraco, arrancou do chão o primeiro prédio que viu. Era a
hiper-rodoviária de Supercidade, que por um erro de cálculo do Supertodos foi
atirada no litoral de Superaba. Jogada inteirinha no mar, a edificação causou
imediatamente uma gigantesca tsunami, que afundou todos os navios do
recém-aberto porto e dirigiu-se rugindo para a cidade mais próxima. O volume
dágua colheu a Páscoa em Superciudad e logo uma onda de crianças, coelhos e
ovos inundou o estádio de Supercitá, no exato momento em que o time da casa
fazia o gol de empate. A onda então se tornou um rio de gente, que correu
caudaloso carregando na corrente a santa procissão de Supertown, o aniversário
de Supercity, os desfiles pela independência de Superville, os discursos de
Superzeiro e as escolas de samba de Supertrópolis.
Foi então que explodiram os fogos de
ano-novo em Supercountry, e o Supertodos pensou estar sendo metralhado. Para
anular os fogos pensou em usar seu sopro-super-frio, mas por engano usou o
sopro-super-quente e derreteu toda a neve do Natal de Superterra. A avalanche
desceu sobre Superland se misturando com as cédulas das eleições e a massa
atingiu em cheio
Superpátria, levando consigo o dinheiro, os papéis e os
acionistas da bolsa de valores. Por fim, com quase tudo destruído à sua volta,
o Supertodos se deteve para pensar, ofegante, os dentes cerrados, o olhar
injetado, percebendo o quanto estava difícil pegar aqueles ladrões.
Foi então que ele percebeu o trem-bala.
Já tendo alcançado a sua máxima velocidade
sobre os trilhos, o prodígio tecnológico de Arraial Super seguia disparado em
direção ao infinito, e o Supertodos teve seu lampejo final: só podem ter fugido no trem. E avançou,
rápido como ele mesmo.
Ultrapassou o trem-bala, pousou sobre os
trilhos, agarrou os dormentes e... desviou o rumo do trem, fazendo-o dirigir-se
perigosamente à Supervila, a quatrocentos quilômetros por hora.
O composto chocou-se violentamente com a
construção de 1836 andares, arrancando seus alicerces e derrubando todo o
prédio, mais o rei, os operários e os engenheiros.
Ao ver soterrado seu querido trem-bala, só
então o Supertodos percebeu tudo o que tinha feito. E escondeu-se apavorado.
Duzentos e dezesseis milhões de pessoas
procuravam-no furiosamente. Afinal, quando sobrevinha alguma catástrofe, eles
sempre sabiam a quem procurar.
Encontraram-no escondido num dos vagões do
trem-bala, sob as ruínas do altíssimo prédio.
- Deu
pra contar. São 1839 andares,
arriscou ele.
- Eram,
disse alguém.
- Os
engenheiros e operários estavam lá em cima?, perguntou outro.
- Estavam.
Agora estão lá embaixo, apontou ele pros escombros.
Uma coroa surgiu ao lado do herói, e sob
ela a cabeça do rei.
- Ôi, rei! Tudo bem?, esforçou-se o
Supertodos.
O rei limitou-se a uivar.
A população então decidiu que não havia
mais o que fazer. Chamaram a polícia e colocaram, de novo, o Supertodos em
cana.
Da próxima vez, eles não precisariam nem
procurar.