terça-feira, 17 de julho de 2018

O SUPERTODOS



   
Fernando Lomardo
 

     Ele tinha tudo. Superpoderes. Todos. Era forte como o Super Homem, duro como o Homem de Ferro, esperto como o Batman, prodígio como o Robin, rápido como The Flash, cego como o Lanterna Verde. Voava, corria mais que um trem-bala, salvava os passageiros do trem-bala, fazia ponte com o próprio corpo para o trem-bala passar por cima, chupava o trem-bala que nem bala. Nadava como Namor, gritava como Tarzan, tinha visão de raio-X e olho eletrônico, jogava seu martelo e seu escudo, usava capa, capacete, máscara, luvas, malha, símbolo, botas, sunga, short, chapéu, camiseta. Tinha mais de dez identidades secretas: industrial, ex-combatente, estudante, jornalista, aviador, milionário, agente federal, filho de lords escoceses, mordomo, deus do Olimpo e não sei mais quantas.
     Apesar de tudo, era um bom sujeito. Os habitantes das dezoito cidades onde ele morava (todas com mais de doze milhões de habitantes, ele tinha uma paixão irreversível pelas grandes metrópoles) até que gostavam dele – quando se lembravam de que ele existia. Naturalmente, isso só acontecia quando sobrevinha alguma catástrofe. Então, todos sabiam imediatamente a quem procurar.
     Foi o que aconteceu naquela sexta-feira, 13 de agosto de 2013. Apesar da crença geral de que este é um dia de azar, todos estavam felizes com as magníficas perspectivas daquela data. As dezoito metrópoles tinham motivos de sobra para comemorar: em Supercity, festejavam o aniversário da cidade; em Supertown, o dia do santo padroeiro; em Superville, tudo estava pronto para os festejos em homenagem ao dia da independência; em Superburg, os habitantes relembravam a proclamação de sua república; regozijava-se Supergrado pelo aniversário do monarca; em Supercidade, finalmente se inauguraria uma rodoviária à altura; em Supercitá, todos deliravam com a decisão do campeonato; Supertrópolis, alucinada, brincava o seu carnaval; em Superaba, a abertura dos portos era louvada com entusiasmo; em Superzeiro, grandes folguedos lembravam a data do nascimento de seu patriarca; Superciudad cândida e docemente atravessava a Páscoa; Supervila se auto-elogiava pela inauguração, longamente discutida e adiada, do prédio mais alto do mundo (mais de 1836 andares, ou 9.000 metros, os engenheiros e operários perderam-se nas nuvens e ninguém sabe ainda se o prédio ficou pronto); Supertaba, excitadíssima, aguardava pela manhã a visita do Papa; em Supercountry, à meia-noite explodiriam os fogos de ano-novo; Superland agitava-se em meio às eleições para prefeito; em Superterra, o clima e os votos eram de Natal; Superpátria, arrogante e blasé, gastava no uísque a alta jamais igualada da bolsa de valores; e a mais nova de todas elas, exemplo de desenvolvimento a curto prazo, a pouco mais que cinqüentenária Arraial Super assistiria a corrida nos trilhos de sua mais recente e sofisticada realização: o trem-bala. Os habitantes destas dezoito localidades saíam para as ruas felizes. Despreocupados, absortos nas perspectivas internas. Todos pensavam nas festas.
     Por cima ou por baixo de todos eles, voando em baixo dágua ou correndo velozmente dentro do vagão do metrô, o Supertodos, vigilante, zelava pelas cidades e pelo bem-estar de seus cidadãos. Que só se lembravam dele na hora das catástrofes. Ele estava ali, sempre ali, sempre ele, ali, sempre, sempre ele. Não os largava um instante, não desgrudava deles, estava sempre com o olho eletrônico atento a qualquer ruído que pudesse representar perigo para seus amados habitantes, suas pernas sempre prontas para voar, a super força acumulada no cérebro. Em 13 de agosto de 2013, apesar da crença geral de que este é um dia de azar, tudo parecia correr bem.

     Não fosse o fato de o Supertodos escutar demais.

     Nosso herói, ouvindo alguém comentar a comemoração dos anos do rei, entendeu que alguma coisa colocava em perigo o ânus do rei. E pôs-se a agir imediatamente. Avançou sobre a cerimônia em Supergrado e puxou todos os tapetes vermelhos, derrubando todos os presentes. Agarrou o rei pela coroa e o levou para o alto do prédio de 1836 andares em Supervila. Enquanto o monarca chorava desesperado, morrendo de medo de olhar para baixo, o Supertodos desceu decidido a encontrar os responsáveis pela conspiração. Onde estariam os assassinos? Para melhor perscrutar toda a região, pensou em utilizar o olho eletrônico, mas uma súbita confusão de idéias o fez sair voando incontrolavelmente, igual a uma bexiga que perde o gás, e ele acabou dando com a cabeça num 747, derrubando-o no ato. O aparelho caiu sobre Supertaba, exatinho no palanque onde se pronunciava o Papa, e a correria fez o Supertodos pensar que os traficantes estavam ali. Atirou seu martelo sobre a multidão, certo de que acertaria os culpados, mas acertou em Superburg e a cratera que abriu na cidade engoliu metade dos desfiles pela proclamação da república. Decidido a fechar o buraco, arrancou do chão o primeiro prédio que viu. Era a hiper-rodoviária de Supercidade, que por um erro de cálculo do Supertodos foi atirada no litoral de Superaba. Jogada inteirinha no mar, a edificação causou imediatamente uma gigantesca tsunami, que afundou todos os navios do recém-aberto porto e dirigiu-se rugindo para a cidade mais próxima. O volume dágua colheu a Páscoa em Superciudad e logo uma onda de crianças, coelhos e ovos inundou o estádio de Supercitá, no exato momento em que o time da casa fazia o gol de empate. A onda então se tornou um rio de gente, que correu caudaloso carregando na corrente a santa procissão de Supertown, o aniversário de Supercity, os desfiles pela independência de Superville, os discursos de Superzeiro e as escolas de samba de Supertrópolis.

     Foi então que explodiram os fogos de ano-novo em Supercountry, e o Supertodos pensou estar sendo metralhado. Para anular os fogos pensou em usar seu sopro-super-frio, mas por engano usou o sopro-super-quente e derreteu toda a neve do Natal de Superterra. A avalanche desceu sobre Superland se misturando com as cédulas das eleições e a massa atingiu em cheio Superpátria, levando consigo o dinheiro, os papéis e os acionistas da bolsa de valores. Por fim, com quase tudo destruído à sua volta, o Supertodos se deteve para pensar, ofegante, os dentes cerrados, o olhar injetado, percebendo o quanto estava difícil pegar aqueles ladrões.

     Foi então que ele percebeu o trem-bala.
     Já tendo alcançado a sua máxima velocidade sobre os trilhos, o prodígio tecnológico de Arraial Super seguia disparado em direção ao infinito, e o Supertodos teve seu lampejo final: só podem ter fugido no trem. E avançou, rápido como ele mesmo.
     Ultrapassou o trem-bala, pousou sobre os trilhos, agarrou os dormentes e... desviou o rumo do trem, fazendo-o dirigir-se perigosamente à Supervila, a quatrocentos quilômetros por hora.
     O composto chocou-se violentamente com a construção de 1836 andares, arrancando seus alicerces e derrubando todo o prédio, mais o rei, os operários e os engenheiros.
     Ao ver soterrado seu querido trem-bala, só então o Supertodos percebeu tudo o que tinha feito. E escondeu-se apavorado.

     Duzentos e dezesseis milhões de pessoas procuravam-no furiosamente. Afinal, quando sobrevinha alguma catástrofe, eles sempre sabiam a quem procurar.

     Encontraram-no escondido num dos vagões do trem-bala, sob as ruínas do altíssimo prédio.

     - Deu pra contar. São 1839 andares, arriscou ele.
     - Eram, disse alguém.
     - Os engenheiros e operários estavam lá em cima?, perguntou outro.
     - Estavam. Agora estão lá embaixo, apontou ele pros escombros.

     Uma coroa surgiu ao lado do herói, e sob ela a cabeça do rei.
     - Ôi, rei! Tudo bem?, esforçou-se o Supertodos.
     O rei limitou-se a uivar.

     A população então decidiu que não havia mais o que fazer. Chamaram a polícia e colocaram, de novo, o Supertodos em cana.
 
     Da próxima vez, eles não precisariam nem procurar.