Anos de chumbo e concreto
Pedro Henrique Pedreira Campos
Foi durante a ditadura que as grandes
empreiteiras consolidaram seu poder, em íntimas ligações com o Estado
1/6/2015
A Operação Lava Jato, deflagrada em 2014
em ação conjunta da Polícia Federal e do Ministério Público, colocou atrás das
grades dirigentes executivos das maiores empresas brasileiras de engenharia. As
investigações revelaram que as empreiteiras se organizavam na forma de cartel e
mantinham esquemas de corrupção em contratos com a Petrobras. Mas este tipo de
relação promíscua entre empresários e órgãos públicos não é exatamente uma
novidade. O poder e a influência política dos empreiteiros de grandes obras
devem muito ao período da ditadura civil-militar.
As principais empresas do ramo foram
fundadas entre as décadas de 1930 e 1950, momento em que o eixo do desenvolvimento
econômico brasileiro se deslocava do campo para as cidades. Para dar conta
desse processo, foi montada uma infraestrutura voltada ao desenvolvimento da
indústria, com empreendimentos principalmente nas áreas de energia e de
transporte. O Estado demandou grandes obras para as corporações de engenharia,
ajudando a impulsionar o desenvolvimento industrial. Camargo Corrêa (1939),
Andrade Gutierrez (1948), Queiroz Galvão (1953), Mendes Junior (1953)... como o
nome da maior parte dessas empresas indica, elas tiveram em sua origem (e têm
até hoje) o controle eminentemente familiar.
O governo Juscelino Kubitschek (1956-1961)
foi muito importante para o desenvolvimento das empreiteiras, encomendando-lhes
as rodovias previstas no Plano de Metas e as obras da nova capital federal,
Brasília. As corporações do setor tiveram então um crescimento impressionante.
De pequenas e médias empresas locais tornaram-se grandes firmas nacionais. Nos
anos e nas décadas seguintes, sob a ditadura, as construtoras alcançaram uma
expansão sem precedentes, em virtude de políticas estatais favoráveis às
atividades do setor, incluindo um intenso programa de obras públicas.
Formaram-se grandes grupos na indústria de construção pesada. Com incentivo
estatal, as empresas se ramificaram para outros setores econômicos, e desde
1968 passaram a realizar obras também em diversos países. Foi a ditadura a
responsável pela gestação de grandes conglomerados internacionais liderados
pelas empreiteiras. E o poder conquistado por esses grupos consolidou-se de tal
forma que não foi abalado nem com a transição do regime político, na década de
1980.
Ainda no período Kubitschek, os
empresários da construção passaram a se organizar em associações e sindicatos
nacionais. Foram criadas entidades como a Câmara Brasileira da Indústria da
Construção (CBIC) e o Sindicato Nacional da Construção Pesada (Sinicon) – que
desempenhariam papel relevante na desestabilização do governo João Goulart e na
deflagração do golpe civil-militar. Diretores dessas entidades participavam
também do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), que reunia oficiais
da Escola Superior de Guerra (ESG) e representantes de empresas multinacionais
e assumiria ativamente a campanha para derrubar João Goulart. Caso emblemático
foi o de Haroldo Poland, presidente da empreiteira carioca Metropolitana,
ex-presidente do Sinicon e que desempenhava função fundamental dentro do Ipes.
Ligado a oficiais militares, Poland foi um dos agentes civis mais importantes
no golpe de 1964.
Ao longo da ditadura, esses organismos
fortaleceram sua atuação junto ao Estado, conquistando livre trânsito em certas
agências e influenciando a agenda das políticas públicas nacionais. Enquanto as
organizações populares e os sindicatos dos trabalhadores eram cerceados e suas
lideranças perseguidas, não havia o mesmo tipo de repressão às organizações
representativas das empresas da construção civil, que se multiplicavam e tinham
intensa proximidade com certas figuras do governo. A Confederação Geral dos
Trabalhadores (CGT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) foram fechadas pela
ditadura, enquanto continuavam sendo criadas entidades de empresários da
engenharia, como a Associação Brasileira de Engenharia Industrial (1964), o
Sindicato da Construção Pesada de São Paulo (1968) e a Associação de
Empreiteiros do Estado do Rio de Janeiro (em 1975).
A política de repressão e terrorismo de
Estado contou com o apoio, inclusive financeiro, de empresários e empreiteiros.
A Camargo Corrêa foi uma das empresas que contribuíram com iniciativas para
desbaratar a esquerda armada e suas organizações, usando métodos que incluíam
tortura e assassinatos. A mais conhecida foi a chamada Operação Bandeirantes,
financiada por empresas como grupo Ultra, Camargo Corrêa, Folha de S. Paulo,
Nestlé, General Electric, Mercedes-Benz e Siemens.
Grandiosos empreendimentos foram
realizados durante o regime, fortalecendo as maiores construtoras, que ficaram
responsáveis pelas principais obras do período. Itaipu e outras hidrelétricas
de grande porte, a Transamazônica e outras rodovias em diversas regiões do
país, a Ferrovia do Aço e projetos no setor ferroviário, os metrôs do Rio e de
São Paulo, os conjuntos habitacionais do Banco Nacional de Habitação (BNH,
criado em 1964), as usinas termonucleares de Angra dos Reis e a ponte
Rio-Niterói foram alguns dos projetos de grande envergadura que saíram do papel
naquele período.
Com o suporte institucional do AI-5, em
1969 o governo estabeleceu reserva de mercado para as obras públicas realizadas
no Brasil: a partir de então, somente companhias sediadas no país e com
controle nacional poderiam ser contratadas. Várias outras medidas beneficiaram
o empresariado, como isenções fiscais, financiamento público de obras internas
e no exterior, entre outras decisões que ampliavam as margens de lucro da
iniciativa privada. Em relação às políticas trabalhistas, também houve
favorecimento generalizado aos empresários, e aos empreiteiros em particular.
Medidas de “arrocho” salarial implantadas a partir do golpe beneficiavam
companhias que empregavam numerosa força de trabalho, caso das empreiteiras. A
repressão aos sindicatos permitia que as empresas ignorassem as demandas dos
operários por melhores condições de trabalho. Com fiscalização relapsa em
relação à segurança, o país virou recordista internacional em acidentes de
trabalho – no auge da ditadura, chegou-se a registrar 5 mil trabalhadores
mortos por ano, e o setor de construção civil era um dos principais
responsáveis por essas estatísticas.
Para as empresas de engenharia era
rentável manter condições inadequadas e perigosas nas obras e não dar atenção à
saúde do funcionário, visto que as multas – quando aplicadas – eram de reduzido
valor. Quando ocorriam acidentes, era prática corrente culpar o próprio
trabalhador, isentando o empregador da sua responsabilidade. Não à toa, ao
final do regime, em meio ao processo de abertura política, eclodiram diversas
greves, revoltas e motins em canteiros de obras, inclusive em grandes
empreendimentos como a usina de Tucuruí, erguida entre 1976 e 1984 em plena
selva amazônica.
Sob as bênçãos da ditadura, o Brasil viu
consolidar-se um capital de novo porte, monopolista em alguns setores da
economia – e entre estes destacou-se a construção civil. Alguns poucos grupos
chegaram a um patamar diferente, extremamente vigoroso, detendo amplo poder
econômico e político. As principais empresas beneficiadas foram Odebrecht
(Norberto Odebrecht), Camargo Corrêa (Sebastião Camargo), Andrade Gutierrez
(Sérgio Andrade) e Mendes Júnior (Murillo Mendes). Dentre os agentes políticos
da ditadura associados aos empreiteiros, destacam-se Mario Andreazza (ministro
dos Transportes de 1967 a 1974 e do Interior de 1979 a 1985), Eliseu Resende
(diretor do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem [DNER] e ministro dos Transportes
de 1979 e 1982) e Delfim Netto (ministro da Fazenda de 1967 a 1974). O cenário
forjado nos anos 1960 e 1970 foi altamente favorável ao crescimento das
atividades dessas empresas, em ambiente propício para a acumulação de capital.
A participação ativa que esses e outros empresários tiveram junto ao governo é
mais uma prova de que o regime não foi somente militar, mas também civil, com
corporações e Estado de mãos dadas em esquemas de favorecimento mútuo. Um
casamento que, tudo indica, resistiu incólume à mudança de regime, e persiste
em tempos democráticos.
Pedro
Henrique Pedreira Campos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro e autor de Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a
ditadura civil-militar brasileira, 1964-1988 (Eduff, 2014).
Saiba mais
CRUZ, Sebastião Velasco. Empresariado e Estado na Transição
Brasileira: um estudo sobre a economia política do autoritarismo (1974-1977).
Campinas/São Paulo: EdUnicamp/ Fapesp, 1995.
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 3. ed.
Petrópolis: Vozes, 1981.
FONTES, Virgínia & MENDONÇA, Sonia
Regina de. História do Brasil Recente:
1964-1992. 4. ed. atualizada. São Paulo: Ática, 1996 [1988].
LEMOS, Renato. “Contrarrevolução, ditadura e democracia no Brasil”. In: SILVA,
Carla Luciana; CALIL, Gilberto Grassi & SILVA, Marco Antônio Both da
(orgs.). Ditaduras e Democracias: estudos
sobre hegemonia, poder e regimes políticos no Brasil (1945-2014). Porto
Alegre: FCM, 2014.
Filme
Cidadão Boilesen (Chaim Litewski,
2009)
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