Fernando Lomardo
Tocou o telefone. Minha mulher atendeu.
“É pra você”. Atendi.
“É o senhor Fernando Lomardo”?
“Pois não”.
“Aqui é da Fundação Biblioteca Nacional.
Eu quero falar com o senhor sobre as declarações que o senhor tem feito no
grupo digital de pareceristas”.
“Quem está falando”?
“Aqui é da FBN”.
“O senhor é parecerista”?
“Não”.
“Então como o senhor teve acesso aos
e-mails de um grupo fechado”?
“Nós sabemos tudo o que se passa no grupo.
Qualquer coisa que for falada sobre a FBN chega aqui. Temos controle total. E
não gostamos do que o senhor anda falando no grupo”.
O diálogo prosseguiu em tom
progressivamente ríspido, principalmente da minha parte. Terminamos quando
informei ao interlocutor que poderia processá-los criminalmente, a ele e à
Fundação Biblioteca Nacional, por invasão de privacidade. Mas estou colocando o
carro na frente dos bois.
O Ministério da Cultura havia aberto, em
julho de 2009, inscrições para pareceristas da Sefic (Secretaria Especial de
Fomento e Incentivo à Cultura). Os membros selecionados atuariam, através do
Salic (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura, plataforma digital de
inscrição e avaliação de projetos culturais), na emissão de pareceres técnicos
para projetos culturais que reivindicavam isenção fiscal no âmbito da Lei
8.313/91, popularmente conhecida como Lei Rouanet. Minha inscrição foi aprovada
para as áreas de Artes Cênicas, Música e Eventos Literários, o que me levaria a
atuar sob coordenação de duas das chamadas Entidades Vinculadas do Ministério
da Cultura: a Funarte (Fundação Nacional de Artes) e a FBN (Fundação Biblioteca
Nacional).
Desde o início dos trabalhos nós, os cerca
de 400 pareceristas aprovados no processo, criamos um grupo de mensagens
eletrônicas na internet, de modo a trocarmos informações e dúvidas,
ajudando-nos uns aos outros, tanto nos aspectos técnicos da legislação quanto
na utilização da própria plataforma virtual recém-criada, já que o treinamento
que nos havia sido garantido pelo edital absolutamente não aconteceu, numa das
ocorrências mais tristemente amadorísticas de que já tive a infelicidade de
participar.
Voltarei a este treinamento em artigo
posterior. Aqui, estou dando um rápido histórico dos fatos que antecederam o
telefonema que abre esse artigo. Como a sucessão de erros praticada pela Sefic
e pelas vinculadas, em curto espaço de tempo, superava as expectativas mais
pessimistas, muitos de nós começaram a trocar observações sobre essas falhas no
grupo digital. Tal grupo, por razões óbvias, era evidentemente fechado – só os
pareceristas faziam parte. Era necessária a autorização da moderadora do grupo
para novas adesões. Isso visava preservar inclusive o sigilo do qual se
recobrem os projetos em avaliação. Era portanto inaceitável que qualquer pessoa
que não fizesse parte do grupo tivesse acesso às conversas. Um funcionário da
FBN, que não fosse parecerista, não poderia ter acesso às informações ali
trocadas. A conclusão era inevitável: alguém do grupo remetera mensagens
privadas à FBN.
A conversa citada acima não teve maiores
consequências. Não processei os “invasores” e não voltei a receber qualquer
contato ou reclamação dos mesmos. Mas essa foi a primeira demonstração pessoal
que tive (e na época não liguei os pontos) de um fato que se tornou cada vez
mais evidente e entranhado na administração pública brasileira, e que hoje
apresenta sua salgadíssima e danosa conta: o aparelhamento, pelo partido do
governo, das instituições públicas, através não só de cabides de empregos, mas
de arapongas que vigiam tudo e todos na intenção de preservar a “democracia” –
uma democracia bem ao estilo de Millôr Fernandes em sua clássica frase:
‘DEMOCRACIA É QUANDO EU MANDO EM VOCÊ; DITADURA É QUANDO VOCÊ MANDA EM MIM”.
Fiquei cerca de dois anos como parecerista
do MinC. Em todo esse período, não avaliei mais do que uns 20 projetos, até ser
colocado na geladeira pelo diretor da Sefic, interpelado diretamente por mim
após trabalharmos cinco meses sem receber um centavo dos valores previstos em
contrato. Nesses dois anos, presenciei coisas progressivamente estarrecedoras,
desde o “treinamento” a que já me referi até a ausência de resposta a pedidos
de informação enviados aos responsáveis pelo sistema; desde a espionagem aqui
relatada até as diversas falhas no funcionamento da plataforma; desde a ausência
de recebimento pecuniário, a que já me referi, até a perplexidade ao constatar
que não é absolutamente necessário nenhum conhecimento técnico para ser
parecerista de projetos culturais do MinC: simplesmente seu conhecimento
técnico não é exigido.
Todos esses fatos, entre outros, serão
relatados, da forma mais detalhada que meu dossiê e minha memória me
permitirem, numa série de artigos que publicarei aqui a partir de hoje. Talvez
esses textos possam ajudar, minimamente que seja, a formular algumas questões
sobre Política Cultural no Brasil, num momento em que a histeria tomou conta de
uma classe artística que até agora não tem conseguido demonstrar, em primeiro
lugar, o que de fato espera do poder público em termos de Políticas Culturais;
e em segundo lugar, principalmente, por quê apoia uma proposta política que, em
13 anos, se pautou exclusivamente pelo privilégio, pela dissimulação e pela
mentira.
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